29 dezembro 2004

chico "unabridged"

um dos trechos mais contundentes da entrevista do chico buarque ao jornalista fernando de barros, para a folha de são paulo. saiu no domingo, 26/12. quem não tiver acesso ao jornal ou ao uol, me mande um email que envio a entrevista.

Folha - Você faz parte de uma geração de artistas que foi porta-voz de ambições grandes em relação às possibilidades do país. Hoje essas ambições encolheram muito, não se vê mais a perspectiva de mudanças sociais como antes. As aspirações foram redimensionadas para baixo. Como você analisa isso?
Chico Buarque -
Hoje em dia a gente vê pouquíssima margem de uma mudança social. Ao mesmo tempo, em países pobres, como o Brasil é, deveria ser mais do que nunca premente a necessidade de uma transformação social. A situação se deteriora e não se enxerga uma alternativa razoável.
Me preocupa que estamos nos encaminhando cada vez mais para uma situação irracional. Tudo passa pela economia. É difícil. Eu tendo a acreditar nos economistas quando dizem ser impossível gerenciar países como o nosso de outra forma. Quem sou eu para opinar? Eu me sinto muito diminuído, tenho pouco interesse em me manifestar, da mesma forma que tenho pouco interesse em ler opiniões de leigos, de gente desavisada a esse respeito.
Às vezes podem dizer coisas interessantes, ou até brilhantes, mas quando chega a hora de uma discussão mais séria essas opiniões soam quase como um escárnio, coisa de poeta.

Folha - Você se vê pressionado a falar sobre esses assuntos?
Chico -
Eu cada vez mais me abstenho por reconhecimento da minha limitação, da minha ignorância. Aí eu sou realmente modesto. Não sou modesto em relação ao que eu faço como artista. Mas, sobre os rumos ou possibilidades do país, não vejo honestamente que contribuição eu possa dar.
O que eu posso fazer é só constatar minhas perplexidades, meus receios diante desse quadro cada vez mais assustador. Como não se vê perspectiva de mudança a curto ou mesmo a médio prazo, a sociedade toda é levada a um certo conformismo, ou mesmo a um cinismo. Na alta classe média, assim como já houve um certo esquerdismo de salão, há hoje um pensamento cada vez mais reacionário, com tintas de racismo e de intolerâncias impressionantes.
O medo da violência na classe média se transforma também em repúdio não só ao chamado marginal, mas aos pobres em geral, ao sujeito que tem um carro velho, ao sujeito que é mulato, ao sujeito que está mal vestido. Toda essa indústria da glamourização, de quem pode, de quem ostenta, de quem torra dinheiro -enfim, ser reacionário se tornou de bom tom. As moças bonitas no meu tempo eram de esquerda. Hoje são todas de direita (risos).
Boutades às vezes racistas, preconceitos de classe, manifestações de desprezo mesmo pelos mais pobres se tornaram algo muito comum e socialmente valorizado.

Folha - Estamos diante de uma grande restauração, uma grande maré conservadora?
Chico -
Exatamente. E diante da negação de conquistas não só sociais mas também comportamentais. Vejo um pensamento cada vez mais conservador, até mesmo na aparência das pessoas, todo mundo arrumadinho...

Folha - Mas isso convive, no caso brasileiro, com um governo de um líder operário, o que poderia ser visto como uma conquista histórica na contramão desse quadro. Como explicar esse curto-circuito?
Chico -
Em primeiro lugar, acho que a eleição do Lula foi uma vitória. Ter conseguido eleger o Lula talvez tenha sido um último sinal de que algo ainda possa mudar para melhor. O outro lado da moeda é esse de que falei.
O Lula sabe o que o cara do rap está cantando. Ele conhece aquela voz. Outros podiam não conhecer, mas o Lula sabe exatamente o que é aquilo, não há de esquecer. O Lula não tem o direito de ignorar isso. Nessa altura, fico depositando minha confiança pessoal no Lula, minha esperança de que ele encontre uma maneira de pelo menos suavizar esse quadro. Mas esse é um fardo muito pesado. É uma esperança talvez demasiada.
De certa forma, o Lula trouxe o acúmulo de esperanças de muito tempo para um tempo em que elas não podem mais se realizar. E aí não é culpa dele. É por isso que tendo a reagir às críticas que são feitas exageradamente ao Lula.

Folha - Parece que você quer evitar jogar água no moinho dos que dizem que as coisas no governo não funcionam ou que o Lula é igual ao Fernando Henrique.
Chico -
Não quero jogar, porque já tem muita água nesse moinho. Vejo muita gente com ódio pessoal do Lula. E não vejo essa gente verbalizar com argumentos essa oposição tão visceral ao Lula. Parece que há uma certa vergonha de ter um presidente como o Lula, um operário, um sujeito com um dedo a menos e que fala errado. Uma vergonha de ver o Lula representando o país lá fora. Percebo isso em gente próxima. E vejo isso na mídia também. Na verdade, isso deveria orgulhar um brasileiro -ter um homem com as origens sociais do Lula na Presidência da República.

Folha - Isso é um avanço em relação à era tucana?
Chico -
Deveria ser também motivo de satisfação ter tido um professor, um sociólogo como o Fernando Henrique na Presidência. Foi um progresso. Nós vínhamos de anos e anos de generais, que não eram eleitos, depois tivemos o Sarney, acidentalmente, o Collor e o Itamar. A eleição do Fernando Henrique foi um salto qualitativo. É um intelectual, um homem com estofo. Agora, também não concordo com aquela satisfação que se viu no nosso meio -"é um de nós, finalmente". Não quero um de nós na Presidência (risos). Não quero ser presidente. Não gostaria que meu pai fosse presidente da República. Não é por aí. Também não acho que o fato de o Lula não ter curso secundário completo seja em si uma virtude. Virtude é ele poder ter sido eleito. Ele pode ser um bom ou um mau presidente. O Brasil ter eleito Lula contradiz tudo o que eu disse há pouco a respeito de um país que parece cada vez mais estar contra gente como o Lula. E volto a repetir: não vejo apenas um sentimento contra o marginal, o traficante, o ladrão. Mas contra o motoboy, contra o desempregado, contra o sujeito que não fala direito, isso apesar de a elite brasileira falar muito mal o português. Constato um sentimento difuso quase a favor do apartheid social.

(...)
Folha - O Rio, onde você mora há muito anos, também mudou muito de cara, em termos sociais. Na sua música, quando a gente pega, por exemplo, dois sambas como "Estação Derradeira", de 1987, e "Carioca", de 1998, percebe-se com clareza essa mudança. Os personagens são outros, a atmosfera é outra, a barra é muito mais pesada, apesar dos muitos encantos da cidade. Como você sente isso no dia a dia?
Chico -
O clima hoje na cidade é muito mais pesado. Para não falar lá de cima, na própria zona sul já há territórios demarcados. Eu conheci a praia como um espaço democrático. Hoje em dia já se sente no ar a idéia de que vai existir logo uma fronteira entre Ipanema e o Leblon. Tem um pessoal na altura do Jardim de Alá [moradores de um cortiço na rua do canal que divide Ipanema e Leblon] que desce ali e ocupa a praia. Vira uma paranóia, vira uma hostilidade com esses garotos que ficam circulando ali. Assaltar na praia é o pior negócio que existe. De vez em quando acontece. No dia seguinte, vem a polícia e enfia os meninos no camburão, quando não faz coisa pior. Eles querem tirar da praia, sumir com eles dali. Não vai ter onde botar esses meninos.
As soluções sugeridas para isso, as coisas que eu leio nas cartas dos leitores dos jornais, em geral são fascistas. Virou moda responder a quem defende os direitos humanos com o trocadilho infame dos "humanos direitos" contra os vagabundos que nos retiram o direito de andar livremente pelo calçadão. Isso quando não se defende abertamente a pena de morte, a reclusão dos garotos de rua, a diminuição da maioridade penal, a prisão perpétua. Eles querem exterminar com os pobres do Rio. Se puderem sumir com aquilo tudo -ótimo. Os meninos são os inimigos, são os nossos árabes, são os nossos muçulmanos.

Folha - E o problema cada vez mais grave do tráfico, como fica? Porque o tráfico virou talvez a única perspectiva de ascensão social, ou de possibilidade de um enredo vitorioso na cabeça de um menino morador da favela.
Chico -
É. Assim como o futebol ou o pagode, o tráfico virou um veículo de ascensão, de chance de ter dinheiro, poder, mulheres e fama, mesmo ao preço de uma vida muito curta. É o que se reserva para um menino sem estrutura familiar, sem emprego, sem quase nada. Eu não vejo outra saída para a violência ligada ao tráfico senão a descriminalização de alguma forma, não sei se total ou parcial, das drogas.
Lembro de ter lido nos jornais que o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, era favorável a essa idéia quando tomou posse. Não sei porque o governo não levou e não leva essa discussão adiante. Isso pode ser desgastante para os índices de popularidade do governo, talvez por isso ninguém toque no assunto.
Talvez pensem que não é o momento de enfrentar o problema em razão de alianças e de compromissos com os evangélicos do PL, essas coisas. Mas se não enfrentarem o problema agora, quando é que vão enfrentar? Se o Lula não enfrentar... Isso tem a ver com tudo o que a gente estava falando antes, com o rap, com o que os garotos da periferia estão falando, com a falta de perspectivas, com a violência toda que está ali, manifesta nas canções.
O Lula sabe muito bem o que é isso. Se não encarar isso, não sei quem vai fazer. Não entendo por que não se discute isso a sério.

Folha - Você acha que o governo, para além dos constrangimentos econômicos, está deixando escapar entre os dedos oportunidades históricas de intervenção social?
Chico -
Acho. Acho. Entendo os compromissos, o FMI, a dívida etc. Tudo bem. Mas isso não tem nada a ver com essas outras omissões. Ou é isso ou é a Bíblia.