10 dezembro 2003

fome de knut hamsun

semana passada terminei de ler "fome", do autor supracitado. há mais de 20 anos saiu a última edição em português, se não me engano, traduzida pelo drummond de andrade. há tempos percorro em vão os sebos atrás de um exemplar, até que tive que me contentar com uma edição em inglês que, pelo menos, tem uma bela introdução do issac bashevis singer.

bashevis singer explica que hamsun é o pai da narrativa moderna. frases curtas, mecanismos psicológicos do personagem etc. foram recursos - na época revolucionários - de que ele lançou mão. hoje as qualidades inovadoras do livro passam praticamente despercebidas, tanto seu estilo já foi copiado.

singer também desfaz as acusações de que hamsun teria sido partidário do nazismo. ele descreve inclusive uma foto em que o escritor, com então 80 anos, aparece apertando a mão de hilter. enquanto o primeiro apresenta um semblante visivelmente embaraçado, o açogueiro alemão o observa com desprezo, segundo singer. (tentei procurá-la pela internet, mas até agora, nada. se alguém (?) consegui-la, avisem-me.)

mas nada disso importa; e sim que o livro é uma pequena obra-prima. na cidade christiania, noruega, um sujeito de seus vinte anos, agoniza de fome enquanto tenta escrever artigos de jornal que lhe paguem a próxima refeição e o quarto de pensão. seu cérebro delira pela falta de alimento, enquanto os dias vão passando, e sempre que parece que seu destino é definitivo, ele consegue alguma coroas (a moeda local) que garantam seu sustento por mais alguns dias.

fiz uma tradução livre de uma das passagens que julguei mais fortes, quando nosso anti-herói pede um osso num açougue para tentar saciar sua fome. ele mastiga os pequenos pedaços de carne que vêm colados, mas o odor de sangue seco o faz vomitar. ele tenta de novo, mas o estômago é incapaz de reter a carne crua. entre lágrimas e vômitos sucessivos, ele se enfurece com sua sorte, na escuridão da noite:

Silêncio. Nenhuma pessoa à minha volta, nem luzes, nenhum som. Eu estava num estado selvagem, minha respiração pesada e audível, e soluçava, rangendo os dentes, toda vez que tinha que abandonar esses pedaços de carne que teriam satisfeito minha fome. Quando nada mais ajudava, a despeito do quanto eu tentasse, atirei o osso contra o portão, enlouquecido pelo mais impotente ódio. Levado pela ira, gritei e urrei ameaças aos céus, rouco e selvagem vociferei o nome de Deus, e dobrei meus dedos como garras...Eu te digo, seu Baal sagrado no céu, tu não existes, mas se existires, eu te amaldiçôo tanto que teu paraíso vai estremecer com o fogo do inferno! Sabes que me ofereci como teu servo, e me rejeitaste, me afastaste de ti, e agora dou-te as costas por toda a eternidade, porque não soubeste a hora de tua visitação! Eu te digo, sei que vou morrer, e zombo de ti do mesmo jeito, mesmo estando cara a cara com a morte, seu Apis dos céus! Usaste de força contra mim, mas não percebeste que ela não funciona comigo. Será que não viste? Será que estavas a dormir quando fizeste meu coração e minha alma? Eu te digo, toda minha energia e cada gota do meu sangue se regozija para que eu zombe de ti e cuspa nas tuas graças. De agora em diante, eu renuncio todos os teus trabalhos e todas as tuas formas, exilarei meus pensamentos mesmo que eles pensem em ti de novo, e rasgarei meus lábios se eles pronunciarem teu nome uma vez mais. Agora, se tu existes, direi-te minha palavra final na vida ou na morte, eu te digo adeus. E como estou mudo, viro-te as costas, e sigo meu caminho...
Silêncio.