16 janeiro 2004

transgressões previstas pelo sistema

pode ser que eu esteja errado, mas acho que a forma predominante de transgressão da juventude hoje é sexual. nos idos dos meus 15 anos, foram as drogas. buscava-se um tipo de transcendência similar ao da geração dos anos 70, anterior à minha. e assim tomávamos todo o tipo de porcaria em nome da expansão da consciência e de um vislumbre de divindade.

(porcaria mesmo. comi pão mofado, fumei fiapo de banana e tomei coca-cola com aspirina, só porque dizia-se que dava onda. sem falar nas receitas caseiras de loló e lança. só não tomei nos canos porque tenho medo de injeção, e crack e ecstasy porque quando apoareceram eu já tinha deixado a farmacopéia de lado).

mas a petizada hoje parece que abandonou a transcedência em nome da imanência. o que importa é o corpo e seus limites, e o que você pode fazer com ele, como pode modificá-lo. a mente é perda de tempo. pensar pra quê? ninguém mais sabe quem foi castañeda, acham que bukowsky é nome de boate, e sequer ouviram falar das experiências de jack kerouac, rimbaud, verlaine, aldous huxley e william burroughs de misturar drogas e literatura (na música, as experiências podem ter permanecido pelo seu caráter mais "sensorial" do que "intelectual").

agora a onda é piercing, tatuagem, body-modification, fisioculturismo, plástica e lipoaspiração - sem falar nessa febre de lesbian-chic de novela, que parece ter contaminado a todo(a)s. de três em três meses sai uma matéria na veja sobre o número cada vez maior de adolescentes apelando para cirurgiões plásticos para corrigir as "imperfeições", que os tornam únicos. hoje ninguém mais quer ser diferente.

mais do que uma atitude contestatória, a transgressão parece ser uma afirmação do sistema, um traço de consumo. o estilo alternativo e rebelde deixa os jovens exatamente iguais uns aos outros. vestindo as mesmas roupas, ouvindo as mesmas músicas, trepando, falando, bebendo, fumando e comendo as mesmas coisas. mas - invariavelmente - consumindo.

desde que você compre, pode ser e fazer qualquer coisa. e se acontece com a moda, porque não aconteceria com as drogas, que movimentam mais grana por ano do que o mercado de petróleo, só perdendo para o de diamantes? por mais que que se reprima, a demanda é grande e os interesses, enormes. esvaziadas de ritual, as drogas deixaram de ser um meio de expandir a mente para tornarem-se meros aceleradores ou amortecedores de sensações. ou o cara quer ficar mais rápido que o mundo, ou quer desacelerá-lo, calçando-lhe pantufas. aliás, parei de usar drogas quando deixei de enxergar a mística de coisa proibida que me seduzira. tava ficando tão fácil encontrar, com tanto nêgo cabecinha usando, que achei melhor parar. não era mais a minha. sou a favor da liberação geral, mas custo a acreditar, como muitos, de que depois o consumo vai diminuir. só acho que vai morrer menos gente desnecessariamente.

na essência, ser transgresor hoje é não consumir.

digo isso tudo porque ontem fui com meu amigo pedro cabeção no empório, em ipanema, onde não punha os pés desde o aniversário da minha irmã, há uns três anos. e o que vi, além daqueles tipos bizarros que parecem brotar nas rachaduras das calçadas à noite (porque nunca se consegue vê-los de dia), foi uma pivetada brincando de crossover sexual. tinha, por exemplo, um molecote todo cheio de piercings, com braceletes de couro e metal (como os que eu gostava, quando me tornei punk, aos 15 anos), cinto sobre a bermuda, e boné. o sujeito se contorcia, dançava e olhava para os lados como se fosse uma bichinha-lacraia. mas logo depois lascou um chupão numa morena com o cabelo tingido de ruivo. que por sua vez, beijou uma menina linda de minissaia e meia colorida até o joelho (tenho tara por minissaia e meias compridas, deve ser algo relacionado com o fato de ter morado duas vezes perto dos colégios pedro II). essa por sua vez, beijou uma narigudinha meio olívia palito, que acabou sendo beijada pelo lacraia.

não conseguiram me chocar, mas fiquei surpreso com a desenvoltura e o descompromisso da garotada. devo estar ficando velho, porque na minha época, liberdades assim - também ultra-transgessoras - eram muito restritas às esferas privadas ou "marginais". andando pelo mainstream, a primeira vez que vi um beijo homossexual foi na faculdade, numa festa de dois amigos casados. eles se beijaram espontaneamente, e só fizeram isso porque estavam na própria casa, em companhia de pessoas absolutamente confiáveis. e mesmo assim, não foi uma atitude afirmativa e demonstrativa - mas apenas uma expressão de carinho. não essa coisa gratuita, ostensiva, feia inclusive quando com heterossexuais.

ah, sei lá, também...mó sociologia de botequim...estou soando muito tijucano? fazer o quê? eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho...