13 fevereiro 2006

do verissimo (filho), mesmo!

dentre as pragas atuais, a que mais me chateia é a dos textos atribuídos a determinados escritores e cronistas que eventualmente circulam a internet e encontram minha caixa postal. pelo visto há muita gente que até hoje não aprendeu a máxima de não acreditar em tudo que lê, ou que simplesmente não lê nada, porque os tais escritos normalmente não têm um pentelho de semelhança com o estilo do autor. e não estou falando de nenhum stendhal, foucault, euclides da cunha ou josé sarney. não, é gente que publica quase todos os dias em jornais de diversos estados. mesmo assim ninguém estranha um mario quintana (talvez o mais erudito dos plagiados) falar de "corpos sarados", porque ninguém nem ao menos sabe com o quê se come o tal mario quintana. enfim, esse palavrório é para copiar um texto do luis fernando verissimo, publicado ontem no globo. de qualquer forma, ele segue abaixo. a propósito, a empresa de cartão de crédito da qual ele se queixa é a credicard. testei o número.

Obrigado, Fernando Henrique

Recebi um cartão de crédito novo para substituir um vencido. Junto, a instrução: ligar para 4001-4828 para desbloquear o cartão.

Como sabe quem liga para um número destes, é preciso passar por um teste de atenção e reflexos, comandado por um robô com voz feminina, antes de merecer o direito de falar com um ser humano. De acordo com o assunto, digita um número, que leva a outra escolha de número, que leva a outra, e a outra, até ? se você escolheu a seqüência certa ? ser saudado por uma voz de gente, mas parente do robô, porque o tom é parecido, que pergunta em que pode servi-lo. Eu disse o que queria. Desbloquear o cartão novo que tinham me mandado.

Para minha segurança, disse a prima do robô, ela precisaria confirmar alguns dados. Numeração do cartão vencido. Numeração do cartão novo.

Meu número de RG. O número do meu CIC. O nome do meu pai. O nome da minha mãe. Gosta de iogurte? É ciumento? Não, esses dois itens eu estou inventando. Mas dei a informação pedida. Depois de uma pausa para consultar o computador, a voz disse:

-- Senhor, os dados não estão corretos.

Examinei os números do cartão antigo e do novo. Eram aqueles mesmo. Meu RG era aquele mesmo. Meu CIC também. Será que eu passara a vida inteira chamando meu pai pelo nome errado? E o nome da minha mãe, era pseudônimo? Pouco provável. Eu disse para a voz que os dados estavam certos.

-- Senhor, alguns dados não conferem com os que temos. Por favor, muna-se da documentação necessária e ligue outra vez.

-- Mas eu estou com a documentação aqui e se ligar outra vez vou dar a mesma informação.

-- Senhor, por favor, muna-se da documentação necessária e ligue outra vez.

-- Quais são os dados que não estão certos?

-- Senhor, não podemos dar essa informação.

-- Mas como é que eu posso corrigir um dado se não sei qual é o errado?

-- Senhor...

Finalmente descobri que podia passar um fax com cópias dos documentos que provavam que eu era eu. Foi o que eu fiz. Semanas depois recebi uma carta impressa, com um ?x? marcando a razão pela qual meu fax era inaceitável: ?Ilegível?. Mandei as mesmas cópias, bem nítidas, pelo correio. Passaram-se semanas. Liguei outra vez para o 4001-4828, para saber das novidades. A voz sabia do meu fax ilegível.

-- Mas eu mandei uma carta depois.

-- Também estava ilegível.

Desisti de desbloquear meu cartão novo. Tudo bem. A vida moderna tem esses buracos negros tecnológicos, culpa de ninguém. Mas será que sabem o estrago que fizeram no amor próprio de um cronista, chamando-o repetidamente de ilegível? Foi por estar assim fragilizado que fiquei emocionado quando me contaram que o Fernando Henrique Cardoso, na sua entrevista no ?Roda Viva? (não vi, estava vendo outro bom ator, o Marlon Brando, na Net), disse que eu não entendia de nada, mas escrevia bem. Eu e meu ego nos sentimos desagravados. Obrigado, Fernando Henrique!

Só um adendo. Há dias chegou uma correspondência do cartão de crédito, estranhando a minha demora em desbloquear o cartão novo.

Se não fosse uma carta impressa, sem uma assinatura humana, eu desconfiaria de ironia.