acho que o ápice do meu carnaval foi domingo. sem bloco, batucada, nem uma mísera serpentina. explico: graças às obras em casa e, principalmente, à descoberta dos erros da obra, eu andava tão atarantado que não havia muito espaço vago na cabeça para folia. portanto, não fazia idéia do calendário dos blocos de rua.
sábado dormi na gávea, e quando saí para almoçar na casa de uma amiga em botafogo, vi a rua jardim botânico interditada por uma horda de foliões. algum bloco desfilava, embora muitas pessoas já estivessem na dispersão. a única maneira de chegar ao meu objetivo, portanto, seria caminhando até a real grandeza. liguei avisando que me atrasaria e tentei cortar caminho através da ruazinha no fim da major rubens vaz, que passa por dentro do jardim botânico. mas o portão estava fechado e o acesso, restrito aos moradores, segundo me informaram os seguranças.
no instante que volto à via principal, desaba um dilúvio capaz de afundar a arca de noé. instala-se uma confusão dos diabos: moleques de dois metros de altura, sem camisa, saltam e urram, meninas dão gritinhos enquanto suas roupas colam ao corpo. uma espécie de eletricidade toma conta do ar. estão todos alegres. eu estou alegre. há poucas coisas me elevam a esse nível de contentamento.
desde que me entendo por gente, tomar banho de chuva é um dos meus programas preferidos. infelizmente, à medida que envelheço, diminuem as ocasiões em que posso desfrutar esse prazer sem parecer maluco. daí que me invade uma sensação de plenitude, uma felicidade de estar irmanado com a massa que finge correr da chuva. todos viram crianças, perdem as inibições, mas mesmo a picardia tem um sabor infantil. um camarada grita: “já to de pinto lavado!”. um grupo canta “banho de lua”, e na altura da pacheco leão, um camarada atira-se na sarjeta cheia e começa a nadar crawl. penso na definição de "homem cordial", e me pergunto se um povo que fica tão alegre na/por causa da chuva é capaz de fazer uma revolução. herança indígena, talvez? nenhum juízo de valor, apenas uma constatação.
era um caos harmônico, a chuva lavando a escória, numa catarse pela semana de merda que a cidade viveu com o pobre do menino arrastado pelas ruas, o medo transformando cidadãos de bem em carrascos. um momento em que as pessoas comuns puderam ser totalmente donas de seu destino, das ruas, subvertendo a ordem de forma pacífica, até se permitindo abrir espaço para a passagem de uma joaninha e uma viatura do corpo de bombeiros.
na altura do jóia, o fedor do esgoto transbordante me agrediu as narinas, mas do outro lado da rua, as pessoas cantavam, abrigadas, “se essa porra não virar, olê, olé, olá...”. cinco camaradas carregavam um outro que, semi-desfalecido, pedia mais um gole. na eurico cruz, fui obrigado a correr pelo meio da rua para fugir do rio de barro que descia a rua e inundava as calçadas.
cheguei em botafogo completamente ensopado. tive que vestir uma calça de lycra que me deixou parecendo um bailarino em fim de carreira. o livro que carregava no bolso, comprado num sebo já meio esfrangalhado, estava soltando pedaços da capa e das bordas das páginas. no outro bolso, as embalagens de papelão dos cd-r e dvd-r que eu levava estavam se desfazendo. comi um pato no tucupi delicioso, capaz de levantar um defunto. bebi cerveja e entabulei ótimos papos. depois fui para casa e dormi, pensando se um satori não terá alguma vaga semelhança com o meu dia.
só no dia seguinte descobri que o bloco que não vi era o suvaco do cristo. deve haver um simbolismo místico mais profundo que me escapa. se não fizer mais nada nos quatro dias de festa, já terei mais que brincado meu carnaval.