hoje à tarde, depois de tentar por duas vezes sem sucesso sentar-me para exercitar as bordunadas e chegar à mesma conclusão daquele personagem do decamerão do pasolini, que ao finalizar a pintura de um afresco se pergunta "por que pintar, se sonhar é tão melhor?", entreguei-me a tarefas prosaicas, como pendurar umas roupas no varal, comer melancia (a fruta, não a mulher), terminar o cama-de-gato do vonnegut, beber uma jarra de café e finalmente começar a ler água viva, da clarice lispector, que me esperava desde antes do feriado de "porcus tristi".
então estava eu, absorto pelo maravilhamento da escrita da clarice, sobre quem o otto lara resende disse, com sabedoria, que o que ela fazia não era literatura, e sim bruxaria, enfim, estava imerso no que mais próximo imagino ser a alquimia da vida através das palavras, quando um dos meus vizinhos de baixo, que andava até tranqüilo ultimamente, achou por bem proclamar ao mundo sua imensa pusilanimidade ao botar uma daquelas músicas de bate-estaca a pleno volume.
só mesmo a interrupção deste momento de profundo deleite estético para me tirar de casa até a praia, sob o pretexto de aproveitar os últimos instantes de sol. como se diz pela aí, "aproveitar a vida". nada nocivo, no fim das contas.
mas antes de arrumar as coisas, dar uma mordida numa maçã e sair de casa, não pude deixar de lembrar das sábias palavras do mestre vonnegut:
"As futuras gerações vão se lembrar da televisão da mesma maneira que o chumbo nos canos d'água levou lentamente os romanos à loucura."
eu diria o mesmo de certas variações do que hoje em dia se convencionou chamar música.
*********
voltei da caminhada e fui cuidar de outras desimportâncias impostas pela vida. os compromissos, perdi-os. liguei para amigos, ofertaram-me propostas pouco interessantes. então novamente deitei-me com clarice e sua água viva.
eu, que semana passada necessitava de distensão, que precisei esticar ao máximo o fio da sanidade justamente para não rompê-lo, hoje me encontro em período de recolhimento, com vontade de abraçar a mim mesmo, um abraço como os que se dá em quem se ama e cujo contato se perdeu há muito tempo. como um irmão retornando do exílio.
mas parece que hoje não é dia. o meu, pelo menos. são nove da noite, e num prédio ao lado, uma horda de bucéfalos urra uma felicidade que crêem genuína, forjada, no entanto, pela televisão ou outra bobagem de massa. e gritam em júbilo, uma chuva de perdigotos fazendo companhia à baba elástica, bovina, a lhes escorrer pelo canto da boca: zaca! zaca! a turma é da fuzarca!...e por aí vai.
preciso sair de casa. felizmente, ainda há o uísque no mundo.