hoje presenciei um fato que periga tornar-se prosaico no meu rio de janeura.
pouco antes do meio-dia eu passava pela avenida chile a caminho de um compromisso. para quem não está familiarizado com a geografia do centro , esta via é de mão-dupla, com uma calçada separando as pistas. normalmente vou pelo meio, porque costuma ter menos gente atravancando o caminho do que nas calçadas das pontas.
dali presenciei um acontecimento que marcou meu dia. foi tudo muito rápido, um recorte fragmentado da realidade, e dessa forma tentarei narrá-lo.
reparo num adolescente alto do outro lado da rua, na esquina da treze de maio. ele dá uma espécie de pinote e põe-se a correr, como se quisesse pegar um ônibus saindo do ponto mais à frente.
logo atrás dele, um camarada aparentando ter quarenta anos, gordo, de calça, casaco e mochila às costas faz um sinal com o braço estendido como se o chamasse. sem obter resposta, aperta o passo, saca uma pistola de detrás da camisa e aponta para o garoto.
eu, que fico incomodado até com barulho de estouro de balão de aniversário, reajo imediatamente tapando o ouvido do lado da arma e acelero o passo para longe da cena, o coração subindo à boca. no entanto, mantenho a cabeça virada para ver o que acontece.
o garoto pára de correr e começa a se abaixar para atender à ordem do homem para deitar no chão. uma mulher vem gritando que o rapaz é seu filho. o cara imediatamente guarda a arma e o rapaz se levanta de novo.
pelo que pude entender, o adolescente vinha acompanhado da mãe e correu, talvez, como supus, para segurar o ônibus. o cara da arma deve ter pensado que era assalto e quis dar uma de herói antes de entender o que acontecia.
continuei meu caminho, pensando na violência e na humilhação de ser forçado a deitar-se de bruços no meio da rua sem ter feito nada, simplesmente porque alguém de posse de uma arma de fogo se achou no direito de fazer justiça.
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não sei o que sentiria se ficasse provado que o rapaz era mesmo ladrão. já fui assaltado e sei que a emoção que bate depois é uma fúria homicida. mas uma vez vi um bandido baleado por um segurança de rua, após uma tentativa frustrada de assalto. eu morava no jardim botânico, e voltava da faculdade quando fui atraído por uma aglomeração. o jornaleiro me inteirou do assunto, e meio guiado por uma curiosidade mórbida, fui lá.
nunca me esquecerei da expressão em choque do ladrão, os olhos esbugalhados olhando em todas as direções, sem no entanto ver nada, a respiração rápida e descompassada, certamente em razão do tiro na barriga. ele estava sentado no chão, escorado num poste, sem camisa e com a calça jeans aberta (depois descobri tratar-se de uma manobra policial para impedir que o "elemento" fuja correndo).
eu pensava "o sujeito deve ter acordado, tomado lá um café, beijado a esposa e ido roubar. mesmo que tenha acordado, cheirado um pó e batido nela..." de alguma forma não consegui sentir raiva. sei lá, senti-o muito próximo a mim. como eu, ele nasceu, aprendeu a falar, andar, em algum momento amou, sentiu alegria, raiva, frustração, medo... tudo igualzinho a mim. só que tive mais sorte. apenas por um acaso não era eu que estava ali.
é muito fácil sentir raiva, indignação, ou querer vingança, quando o alvo é um vilão distante, que causou dano a alguém que a gente não conhece. é quase uma abstração. eu mesmo já me apanhei querendo arrancar jugulares ao ler sobre uns dois ou três casos de violência recentes. mas ao vivo, olho-no-olho, a coisa pode mudar. talvez porque, embora uns se esforcem muito para fugir à regra, ainda sejamos todos humanos.