27 fevereiro 2004

cruci-ficção

não resisti e tarrei o título de um dos manifestantes contrários ao filme do mel gibson, segundo matéria do globo. é genial.

parece que o filme é mesmo de mal-gosto, agressivo e com a sutileza de um ar-condicionado despencando de um edifício em chamas. agora me digam, alguém achou que ia sair algo diferente da cachola do mad max? alguém pensou que ia ver um "evangelho segundo mateus", do pasolini? (esse sim, um filmaço.)

mesmo com toda a celeuma, o mel gibson deve estar rindo de orelha a orelha. afinal, só na estréia, o filme já contabilizou 20 mil capilés (dois terços do que custou). podem falar mal de mim, desde que me forrem de verdinhas; ok, man?

para terminar, o globo publicou um ótimo artigo do new york times. é longo, mas reproduzo porque pode sair do ar.

Uma superprodução com pecados cinematográficos
A. O. Scott
Do New York Times


Num profético episódio de “Os Simpsons”, o convidado especial Mel Gibson, dirigindo e estrelando um remake de “A mulher faz o homem”, pede ajuda a Homer Simpson, que representaria o gosto (ou falta de) popular. Homer convence Gibson a mudar o final, trocando o discurso de James Stewart por um tiroteio que deixa os corredores do Congresso cheios de cadáveres. A platéia sai do cinema enojada. Pensei muito nisso ao ver como Gibson conduziu o lançamento de seu “A Paixão de Cristo” (não, ele não mudou o final, Cristo ainda é crucificado).

Este é um filme tão voltado para a selvageria das horas finais de Cristo que parece ser mais fruto de ira que de amor. Funciona mais para agredir o espírito que para elevá-lo. É enervante, doloroso e, no fim das contas, depressivo, pois é triste ver um filme feito com tão evidente convicção religiosa e tão desprovido da graça cristã.

Esqueça o tom de homilia dominical de antigos filmes americanos sobre o tema: a hora final de “A Paixão de Cristo” consiste basicamente num homem sendo espancado, torturado e morto com requinte de detalhes. Depois de aprisionado e algemado, Cristo (Jim Caviezel) é chutado e sistematicamente chicoteado, primeiro com bastões duros e depois com chicotes de couro com pedras afiadas e cacos de vidro nas pontas. Quando lhe são colocadas a coroa de espinhos na cabeça e a cruz nos ombros, ele virou uma massa de carne ensangüentada, incapaz de ficar em pé direito, gritando e gemendo de dor.

Esfregando nossa cara na dura realidade da morte de Cristo, o filme procura tornar literais acontecimentos que tendemos a imaginar quase que de forma abstrata. Olhe, insiste o filme, quando dizemos que ele morreu pelos nossos pecados, é isso o que queremos dizer. E o espectador, o cristão em especial, é aprisionado num paradoxo sadomasoquista. Por instinto, quer que a carnificina pare; mas, se ela parar, a história não termina e a dádiva da Redenção é recusada.

O paradoxo de desejar que algo horrível pare ao mesmo tempo que você quer que continue tem tanto a ver com teologia quanto com a experiência de se ver um filme. Gibson, intencionalmente ou não, explora a sede de sangue do povo em nome do que considera uma causa nobre, usando meios que em nada diferem dos utilizados por virtuoses do cinema-de-choque como Quentin Tarantino e Gaspar Noé (que submeteu Monica Bellucci, Maria Madalena neste filme, a uma cena de estupro revoltante em “Irreversível”). Gibson é um cineasta formalmente mais conservador, mas conhece a violência tão bem quanto os dois.

Desde que lançou o projeto, o diretor enfatiza sua vontade de fazer este filme o mais realista possível. Assim, os diálogos são em aramaico e num dialeto do latim. A ausência de astros de cinema (à exceção de Monica Bellucci, sempre discreta) adiciona um elemento a mais de verossimilhança. Mas o estilo e o tom do filme estão bem longe do que se convencionou chamar de realismo. A primeira parte, que se passa à noite, tem clima de filme de horror. Enquanto Cristo reza nos jardins do Getsêmani, a câmera se esgueira por trás dele como se estivesse de tocaia. A trilha de John Debney é um grandiloqüente espetáculo macabro de subtons orquestrais ameaçadores e intervenções de coral de arrepiar a espinha. Satã (vivido por Rosalinda Celentano) parece saído de um pesadelo de Wes Craven; Judas, após a traição, é ameaçado por crianças demoníacas.

Os efeitos visuais e auditivos também não são nem um pouco sutis. Os 30 dinheiros de Judas voam em câmera lenta. Quando o primeiro prego perfura a mão de Cristo, é com um ruído que deve ter levado horas de mixagem de efeitos. Os personagens, à exceção de Pôncio Pilatos e sua esposa, são unidimensionais.

Acusações de anti-semitismo, no fim das contas, não têm tanto fundamento

E aí, o filme é anti-semita? Aos meus olhos não pareceu, mas espectadores mais sensíveis poderão discordar. Certamente os fariseus são mostrados como um grupo sinistro e desumano, e a turba que comandam é raivosa. Mas nada disso nunca parece ir além do que está na fonte. O diálogo da já famosa cena cortada, “O sangue dele estará em nós e nos nossos filhos”, está no Livro de Mateus e só um revisionista para querer remover todo e qualquer traço de intolerância e controvérsia numa história localizada bem na fronteira teológica que separa o cristianismo do judaísmo. Pena que Gibson não tenha procurado transcender tais divisões, mas o que realmente fere o filme é sua inabilidade em se articular além dos limites da narrativa cinematográfica mais convencional.

Em muitos filmes (e em muitos filmes de Mel Gibson), a violência contra inocentes clama por vingança no terceiro ato, expectativa que ele, aqui, cria e não satisfaz. Em si, para além de quaisquer acepções da cabeça de espectadores, o filme não esclarece por que tanta carnificina. A Bíblia sugere que o perdão dos pecados é o sentido. Mas talvez Gibson ache que seu público prefere horror e sangue. Vai ver Homer Simpson estava certo.