sempre achei difícil responder qual seria o melhor livro que já li. mas hoje, fazendo um balanço, tem um que ganharia por antigüidade. e se está comigo há tanto tempo, é porque tenho um carinho especial por ele. é o "200 crônicas escolhidas", do rubem braga, de uma edição antigona (paroxítona), do círculo do livro. digo com tranqüilidade que é a minha bíblia. braga é lírico sem ser piegas, espirituoso sem ser engraçado, emotivo sem ser dramático. um mestge, enfim.
lembro-me que assim que o vi, logo me fascinaram a cor de leite achocolatado da capa, e os tipos arredondados do nome do autor, em degradé (é assim?) vermelho. um dia, a parentada foi passar o dia no forte do imbuí, em niterói, e enquanto os outros se divertiam correndo pela praia, me atraquei com o livro sob uma amendoeira. me atraquei mesmo, porque a prosa poética era por demais abstrata para uma criança de quê?...nove anos? a briga foi feia, e perdi de lavada. já à tardinha, cansado do baile que o braga me infligiu, fui me distrair vendo uns mergulhadores (que então, por influência do desenho do johnny quest, eu chamava de "homens-rã"), e um baiacu que um amigo pescara. como ele havia engolido o anzol (o peixe, não o amigo), dávamos umas porradas com ele nas pedras, para ver se ele o cuspia. mas, para espanto de todos, ele inflou. o que foi a parte mais emocionante de todo o dia de pescaria. guardo a imagem até hoje.
digo isso porque hoje estava relendo algumas das crônicas para uma pessoa muito querida (é mulher, antes que esse papo de "pessoa" comece a dar margem a especulações sobre minha opção sexual), e por acaso topei com uma em que o "velho urso" fala da emoção de ver o mar pela primeira vez (ele, como o bob carlos, é de cachoeiro do itapemirim), numa excursão que fez, ainda menino, com um grupo de amiguinhos. depois conta de sua juventude passada à beira-mar, pescando, velejando, nadando, ou simplesmente amando sua beleza. no fim do texto ele termina falando com ele, de uma maneira que me encheu de emoção:
Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ora aflito, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso qua audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa, mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti, gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam - um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar...
Julho, 1938