08 junho 2004

revisitando alfarrábios (I)

pensei em bostejar uns artigos antigos que escrevi para a falecida "Geração". era um projeto louco e ambicioso (sinônimos?) de duas meninas, a joana e a antônia, de publicar uma revista com a proposta inicial de ser uma espécie de time out carioca, mas que depois acabou se tornando uma salada de estilos, um bricabraque da geração gente-bem (a expressão denuncia a idade) carioca do ano 2000.

infelizmente, como é o destino de toda publicação independente, pouco depois de um ano - a primeira edição veio ao mundo em outubro de 2000 - ela foi para o buraco. não sem antes ter tido o seu derradeiro número encartado na edição para assinantes do jb, em um remoto sábado de 2002. foi bom enquanto durou.

nunca pude avaliar o barulho que fizemos (se é que fizemos algum), mas a história rendeu para as duas editoras uma seção na revista de domingo do mesmo jornal - depois assinada apenas pela antônia. foi bonito, amador e anárquico. eu escrevia uma coluna que se pretendia de política, mas não de partidarismo, e sim, voltada para apresentar uma "política do cotidiano". a idéia era mostrar como os assuntos da cidade diziam respeito a todos, e o que os jovens poderiam fazer para mudar as coisas ao seu redor. ou seja, uma puta pretensão. no decorrer do tempo, minhas boas intenções naufragaram no emaranhado que estava se tornando minha vida, e acabei tentando um pouco de tudo.

o primeiro texto que apresentei, ainda muito "durão" (mas que me habilitou a entrar para o "staff"), foi sobre o 27o aniversário da revolução dos cravos, em portugal. era uma tentativa de transmitir a emoção do primeiro contato com essa história, via capitães de abril, da maria de medeiros. porra!, uma revolução feita com flores, praticamente sem tiros, e embalada por uma canção- na minha humilde opinião - lindíssima, grândola, vila morena! era demais para meu coração insurreto.

infelizmente não trenho mais o texto. mas tenho todos os que saíram publicados. considero uns poucos bons, embora às vezes resvalem num certo pedantismo de quem acha que tem um dever a cumprir. enfim, ninguém é perfeito. vou aos poucos os colocando aqui, para não espantar de vez os poucos leitores. divirtam-se (?).

O Geisel foi meu bicho-papão
Minhas primeiras referências políticas vieram da infância


Até uns anos atrás, eu pensava que a minha consciência política havia nascido depois das dezenas de filmes sobre o Vietnã assistidos na adolescência. Achava então uma injustiça o "sacode" que os comunas amarelos infligiram aos ianques, coitadinhos. Para vocês verem como eu estava por fora.

Muito antes, porém, eu já havia recebido uma valorosa lição. Só me lembrei dela há pouco, numa reunião de família, enquanto se rememoravam os micos de infância. Entre um causo e outro, me perguntaram se eu lembrava do Geisel. "Quem, o presidente?", estranhei, calculando que quando ele governara o país, nos anos 70, eu não passava de um molecote. Era quando minha avó materna morava para lá do Maracanã, num recanto batizado São Francisco Xavier, próxima à segunda estação da Central (a primeira, não mentem os sambas, é a Mangueira).sua casa era o point das festas que reuniam a parentada, e varavam madrugada adentro. Eu, com não mais que cinco anos, acabava sempre dormindo, não raro embaixo da mesa de jantar, protegido por uma toalha que se estendia até o chão.

Meus pais, não querendo me acordar, às vezes me deixavam aos cuidados da Vóca - apelido que todos os netos usam para chamar minha avó. até porque, se tentassem, eu muito provavelmente distribuiria pataços a torto e a direito (hábito que, aliás, ainda cultivo). e quando me levavam para o quarto eu despertava com a a casa vazia e com poucas luzes, o que me levava a crer que havia sido abandonado. Então eu corria para a varanda e, na esperança de ainda encontrá-los, chamava-os aos berros.

Aí, minha tia Cléa - que morava numa casa em frente e sempre ficava para ajudar na arrumação -, preocupada que meu escândalo acordasse todo o bairro, alertava:

- Não grite, porque senão o Geisel vem para levar embora criança que chora!".

A princípio, eu não dava a menor bola e seguia com o concerto, até que ela, muito engenhosa, tirava o telefone do gancho como se houvessem ligado:

- Alô, Geisel? Não, não é daqui que tem criança chorando, não! deve ser em outra casa. Como? Você vem conferir?"

Nesse momento, eu parava de chorar na hora, me pelanndo de medo do tal "geisel", que eu não sabia se era homem, bicho ou assombração (talvez, para minha tia Cléa, apolítica até a raiz do cabelo, ele devia ser um pouco dos três).

O general Ernesto Geisel chegou à presidência em 74, um ano depois do meu nascimento. Foi ele quem começou a desmontar o aparelho ditatorial, através de uma distensão "lenta, gradual e segura". Não era dos piores, comparado aos seus antecessores, Costa e Silva e, principalmente, Médici. O primeiro foi o responsável pela assinatura do AI-5, em 68, quando foram rasgados os últimos "escrúpulos de consciência", e passou-se a prender, torturar e sumir com gente, em nome da segurança nacional. No ano seguinte, o outro assumiria o botequim, e não faria feio - ou melhor, bonito. Aniquilou o que restava de resistência (armada ou não) na base do chumbo quente. E saturou o povo com slogans ("Brasil, ame-o ou deixe-o") e canções como "Pra Frente, Brasil", até hoje reconhecida por qualquer torcedor de futebol.

Minha tia até poderia estar enganada, mas certamente estava escaldada. Ao invocar o presidente para me calar, talvez se lembrasse das histórias ouvidas na surdina, sobre pessoas desaparecidas. Ou, quem sabe, viessem à memória as marcas das borrachadas recebidas pelo irmão da minha mãe, apenas por ter tido a infeliz idéia de e passar perto de um soldado a cavalo, para ver de perto um tumulto na Cinelândia. Ou ainda, a história do vôo rasante que minha avó deu para dentro de uma loja, enquanto baixavam as portas de ferro para protegerem-se do gás lacrimogêneo usado para dispersar uma manifestação.

Foi através de relatos de testemunhas assim, sem qualquer formação política, que passei a sempre duvidar das versões oficiais. Pode ter sido essa origem da busca quixotesca que empreendo a caminho dos fatos, e que acabou me levando ao jornalismo. O resto, meus caros, é História...