sei que tenho andado sumidão, mas não ando desligado. as delícias da vida a dois, as agruras de tentar deixar a casa minimamente habitável com salário (qual?) apertado, e o trabalho que não ata nem desata têm consumido tempo e paciência para cuidar do boteco. no entanto, introduzo (epa!) o tema a partir do diálogo travado nos comentários do bostejo anterior, com meu amigo análise, sobre a lei de imprensa. para não deixá-lo sem resposta, reproduzo o artigo do elio gaspari (de 25 de agosto), impecável, que traduz minha opinião melhor do que eu mesmo jamais seria capaz de formulá-la. vai ficar enorme, mas quem tiver saco de ler, lerá.
A essência da LulaPress é a empulhação
Aqui vão dois pares de textos. Relacionam-se com noções de ética e disciplina dos jornalistas. Estão separados pelo tempo, pelo propósito e pela origem.
O primeiro diz o seguinte:
"As notícias devem ser precisas, versando apenas sobre fatos consumados. Não permitir informações falsas, supostas, dúbias ou vagas."
"A divulgação da informação, precisa e correta, é dever dos meios de comunicação pública, independentemente da natureza de sua propriedade."
A segunda frase está no Código de Ética que servirá de base para a definição da alma do projeto que Lula mandou ao Congresso para "normatizar, fiscalizar e punir as condutas inadequadas dos jornalistas". Esse Código, aprovado num congresso da classe em 1987, é muito mais um manual de conduta. Acoplado ao projeto de Lula resultará num regulamento disciplinar dos jornalistas.
A primeira afirmação é do general Silvio Correa de Andrade, chefe da Polícia Federal em São Paulo, no Manual de Censura que distribuiu aos jornais em dezembro de 1968, horas antes da edição do Ato Institucional n 5.
O problema está na coincidência
O Código de Ética do aparelho sindical diz que "é dever do jornalista prestigiar as entidades representativas e democráticas da categoria."
Outro manual de censura, de junho de 1969, avisava que não se podia "publicar notícias ou comentários tendentes a provocar conflitos entre as Forças Armadas, ou entre essas e o poder público, ou entre esse e o povo."
No mundo dos generais considerava-se desprestígio dizer que em alguns de seus quartéis praticavam-se a tortura e o extermínio como política de Estado.
No mundo dos companheiros, os jornalistas têm o dever de "prestigiar" os sindicatos e a Federação Nacional dos Jornalistas, a Fenaj. Seria desprestígio lembrar a maracutaia das aposentadorias de falsos perseguidos políticos, promovida em 1995 pelo Sindicato dos Jornalistas do Rio de Janeiro?
Qualquer semelhança entre os manuais de censura e a visão autoritária e aparelhada que acompanha o projeto de criação do conselho federal do ofício é mera coincidência. Quando uma iniciativa de Lula, associado à Fenaj, guarda semelhanças retóricas com o palavrório dos censores, algo de ruim está acontecendo.
O projeto enviado por Lula ao Congresso ficará alguns anos na gaveta, rosnando. É um documento pedestre, mal intencionado. Na exposição de motivos o ministro Ricardo Berzoini diz o seguinte: "A sociedade tem o direito à informação prestada com qualidade, correção e precisão, baseada em apuração ética dos fatos." Sabendo-se que em 1968, durante a reunião em que se decidiu baixar o Ato Institucional n 5, louvou-se 19 vezes a democracia e condenou-se 13 vezes a ditadura, pode-se perceber como palavras bonitas ("qualidade, correção e precisão"), escondem o bornal do controle ("disciplina", "advertência", "censura", "suspensão", "cassação").
O projeto confunde deliberadamente um elemento essencial à profissão (a correção e o zelo pela precisão da notícia) com uma obrigação legal submetida à fiscalização, ao julgamento e à disciplina de um braço sindical sustentado pelo confisco de uma parte da renda dos profissionais.
A imprensa tem horror à fiscalização
Depois de se dizer tudo isso contra o projeto, pode-se argumentar que os jornalistas querem publicar grampos telefônicos obtidos ilegalmente, violar o sigilo bancário dos outros, defender o controle externo dos poderes alheios e escrever mentiras. Quando se fala em fiscalizá-los, esperneiam, cantam a "Marselhesa" e se escondem debaixo da alegoria da liberdade de imprensa. Quem achar assim estará muito mais certo do que errado.
O pior é que essa pessoa pode achar mais. Ela pode achar que há órgãos de imprensa que vendem reportagens, entregando-as aos leitores como se fossem produto daquela tal atividade protegida pela Constituição. Pode também suspeitar que os governos federal, estaduais e municipais gastam o dinheiro da patuléia e das empresas estatais com publicidade geralmente associada à simpatia do noticiário. Pode amaldiçoar jornalistas que escrevem belezas sobre eventos aos quais foram convidados a custo zero. São as chamadas "bocas-livres". Em suma: há corrupção, e muita, na imprensa. Essas práticas não atingem a todos os jornais, revistas e emissoras, mas as maracutaias do mundo das comunicações são menos noticiadas no Brasil do que pedofilia de padre no Observatore Romano.
A imprensa brasileira precisa de algum tipo de fiscalização crítica independente. Uma forma simples, pública e bem-sucedida de fiscalização é a figura do ombudsman, adotada em 1989 pela "Folha de S. Paulo". Depois de passar por memoráveis vexames, o "New York Times" criou o seu ombudsman no ano passado. Pode-se achar que é pouco.
Devem existir instâncias de fiscalização além do Poder Judiciário? Para médicos, advogados e arquitetos, elas existem.
Essas instâncias devem se misturar com o Estado ou devem se confinar ao universo do prestígio profissional? De um lado ficam os conselhos como o que Lula quer criar. São organismos de alistamento e arrecadação compulsória. De outro, entidades como as associações de jornais, revistas ou emissoras. Como as instâncias fiscalizadoras dos agrupamentos patronais freqüentemente não fiscalizam coisa alguma, a bola poderia rolar para a Associação Brasileira de Imprensa?
Essas são questões a respeito das quais cada um deve formar a sua opinião, pronto para mudá-la a cada duas semanas. Debate bonito é assim.
Notícia e verdade não são a mesma coisa
Vale voltar às duas primeiras afirmativas lá de cima. Pode-se sustentar que o Código de Ética dos jornalistas e o Manual de Censura do general dizem coisas parecidas porque dizem coisas verdadeiras. É aí que mora o perigo. Toda vez que se fala em notícias necessariamente precisas, verdadeiras, seguras e claras, o que se quer é embaralhar o debate. Coisa do tipo enquanto-houver-fome-não-haverá-democracia.
A confusão entre notícia e verdade é uma falácia. Ela foi desmontada há quase um século por Walter Lippmann, um dos maiores jornalistas do seu tempo:
"Quem acredita que notícia e verdade são duas palavras que designam a mesma coisa, não vai a lugar algum. A função da notícia é sinalizar um acontecimento. A função da verdade é trazer à luz fatos ocultos, formando um quadro da realidade dentro do qual as pessoas possam agir. (?) Nós não entendemos a natureza limitada das notícias e a complexidade ilimitada da sociedade; nós superestimamos nossa capacidade de resistir, nosso espírito público e nossa competência." Ele se divertiu lembrando que os cidadãos pagam bom dinheiro pelos seus lugares no teatro e pelas passagens de trem, mas querem comprar a verdade, todos os dias, pagando com a menor moeda em circulação (Em 1921 os jornais custavam um centavo de dólar).
"Precisas e corretas" mistificações
Em 1964 num memorável julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz William Brennan Jr. redigiu a sentença que assegura à imprensa americana o direito de cometer erros factuais no noticiário relacionado com personalidades públicas. Brennan sustentou que se os jornalistas forem colocados debaixo do medo de punições legais caso não contem histórias "precisas e corretas", quem perde é a sociedade, por ficar menos informada. Nada a ver com licença para mentir. O jornalista obriga-se a demonstrar que não sabia da falsidade da notícia e que não agiu como se pouco lhe importasse o fato de ela ser verdadeira ou falsa. Se alguém acha que a Corte Suprema é leniente com a imprensa, vale informar que, pelos seus critérios, algumas dezenas de jornalistas brasileiros teriam passado pela cadeia por conta da publicação de grampos. As casas impressoras ou transmissoras onde trabalhavam teriam corrido o risco de falir.
O comissariado que produziu o projeto de LulaPress promete ao público um regime de informações "precisas e corretas", sabendo que esse tipo de doce não existe. Às vezes essa empulhação parte dos jornalistas. Outras vezes parte daqueles que pretendem controlar os jornalistas. Em todos casos, o que se quer é empulhar a patuléia.