...é o título dado à trilogia fantástico-surrealista de italo calvino, formada pelos deliciosos visconde partido ao meio, o barão nas árvores e o cavaleiro inexistente. embora não tenha lido ainda o barão..., considero o cavaleiro... uma obra-prima difícil de se igualar. a história gira em torno de agilulfo emo bertrandino dos guildiverni e dos altri de corbentraz e sura, cavaleiro de selímpia citerior e fez, paladino do exército de carlos magno, que é nada mais do que uma extrema força de vontade dentro de uma armadura vazia. isso mesmo - o caboclo não existe. é consciência sem existência.
ele é acompanhado por gurdulu, seu escudeiro aloprado, que não sabe exatamente o que é, ou que nome tem. é existência sem consciência, oscilando ao sabor do vento, quase zen - o contraponto perfeito de seu senhor. agilulfo acaba ganhando um aprendiz informal, o jovem rambaldo de rossiglione, aspirante a cavaleiro, cujo pai, o marquês gherardo, morreu pelas mãos do emir isoarre. a existência de rambaldo não goza de paz, com a consciência atormentada ora pelo dever da vingança, ora pelo amor de bradamente, mulher que luta entre os cavaleiros do imperador da frança. um pouco como todos nós, enfim.
destaco um trecho em que os três dirigem-se ao campo de batalha, para enterrar os que tombaram em combate, ao fim do dia. dá bem uma idéia da personalidade deles - e nossa também (sobre mim, pelo menos, que oscilo entre os três, freqüentemente). é interessante ver como calvino cosegue alternar grça e profundidade na medida certa:
Agilulfo arrasta um morto e pensa: "Ó morto, você tem aquilo que jamais tive nem terei: esta carcaça. Ou seja, você não tem: você é esta carcaça, isto é, aquilo que às vezes, nos momentos de melancolia, me surpreendo a invejar nos homens existentes. Grande coisa! Posso muito bem considerar-me privilegiado, eu que posso passar sem ela e fazer de tudo. Tudo - se me entende - aquilo que me parece mais importante; e muitas coisas que consigo fazer melhor do que aqueles que existem, sem os seus habituais defeitos de grosseria, aproximação, incoerência , fedor. É verdade que quem existe põe sempre alguma coisa de seu no que faz, um sinal particular, que não conseguirei jamais imprimir. Mas, se o segredo deles está aqui, neste saco de tripas, muito obrigado, não me faz falta. Este vale de corpos nus que se desagregam não me provoca mais arrepios que o açougue do gênero humano vivo".
Gurdulu arrasta um morto e pensa: "Você dá certos peidos mais fedidos que os meus, cadáver. Não sei porque todos se compadecem de você. O que lhe falta? Antes você se movia, agora seu movimento passa para os vermes que você nutre. Fazia crescer unhas e cabelos: agora vai produzir líqüidos que farão crescer mais altas sob o sol as ervas do campo. Vai se tornar capim, depois leite das vacas que comerão o capim, sangue de criança que bebeu o leite, e assim por diante. Ó, cadáver, você é mais capaz do que eu para viver?"
Rambaldo arrasta um morto e pensa: "Ó morto, corro, corro, corro para chegar até aqui como você, a me fazer puxar pelos calcanhares. O que é esta fúria que me empurra, esta mania de batalhas e amores, vista do ponto onde observamos seus olhos arregalados, sua cabeça virada que bate nas pedras? Penso, ó morto, você me obriga a pensar; mas o que muda? Nada. Não existem outros dias senão estes nossos dias antes do túmulo, para nós, vivos, e também para vocês, mortos. Que me seja concedido não desperdiçá-los, não perder nada daquilo que sou e daquilo que poderia ser. Praticar ações insignes para o exército franco. Abraçar, abraçado, a orgulhosa Bradamante. Espero que você não tenha gasto seus dias de modo pior, ó morto. De qualquer maneira, para você os dados já decidiram seus números. Para mim ainda se agitam no copo dos azares. Eu amo, ó morto, minha ansiedade, não sua paz".