23 fevereiro 2005

A Caixa-preta da Polícia Militar

esse foi o título de um dos meus maiores orgulhos na vida. eu e minha amiga bella carter (que por razões profissionais tem que usar esse pseudônimo) entrevistamos o ex-capitão do bope rodrigo pimentel para o exemplar de setembro de 2001 da revista geração (pouco antes dos aviões do bin laden). ele descasca a política de segurança do então governador garotinho. analisem e vejam o que mudou.

o que me deixou prosa mesmo foi saber, pela chefe de reportagem da revista (cujo irmão trabalhava no gabinete de um deputado aliado), que o garotinho leu e ficou puto. depois, esse irmão ensaiou me chamar, numa boa, para trabalhar com o tal parlamentar, mas desconversei, e não rolou.

ei-la:

A Caixa-preta da Polícia Militar
Ex-capitão expõe como a política de segurança do estado contribui para a violência


Rodrigo Pimentel seria como qualquer outro garotão da Zona Sul do Rio, a não ser por um detalhe: os doze anos em que integrou a elite da Polícia Militar, servindo no BOPE (Batalhão de Operações Especiais). Depois de sofrer represálias e prisões que começaram com a sua participação no documentário "Notícias de uma guerra particular", de João Moreira Salles, o capitão Pimentel pediu baixa da PM em abril desse ano. Aos 30 anos, mesmo tendo aposentado a farda, ele não entrega suas armas, mantendo a postura crítica em relação à política de segurança do estado. Pimentel falou à Geração sobre a banda podre da polícia, liberação de drogas, e apresentou soluções para uma cidade mais tranqüila.

Sua participação no documentário "Notícias de uma guerra particular", de João Moreira Salles,foi muito criticada.
Eu fui escalado para acompanhar o João dentro do BOPE, para não deixá-lo muito à vontade dentro do batalhão. Depois de um dia inteiro de filmagens eu falei: "João, tudo o que você viu aqui é uma grande mentira, nada funciona do jeito que você está vendo. A política de segurança pública se resume a operara em favelas. Em matar, matar, matar. Em morrer, morrer, morrer". Quando o general Nilton Cerqueira assumiu a Secretaria Estadual de Segurança Pública (no governo Marcello Alencar), instituiu uma política de confronto que foi de um descontrole total. A prioridade eram as operações em favelas para prender e matar marginais, e apreender armas e drogas. Nós ficamos quatro anos morrendo como nunca morremos, e matando como nunca matamos. Chegamos a ter dois policiais baleados por dia, e um morto a cada dois. Os índices de segurança permaneceram os mesmos e a população continuou a se sentir insegura.

E quando você teve consciência disso?
Eu sempre comentava com meu pai, que era militar, o resultado de nossas operações. "Essa semana matamos cinco, seis marginais..." Foi quando ele disse: "Filho, eu sou da classe média. Não estou preocupado que você vá à favela e mate seis ou sete. Estou preocupado é em caminhar na praia com a sua mãe e ver policiais na rua". Foi aí que vi que estávamos distantes dos anseios da população. Até quando morre um traficante no morro do Alemão, aquilo não diz nada aos moradores. O que eles gostariam é de acordar e ver a polícia trazendo mais tranqüilidade para a comunidade.

Então, qual seria o caminho para a Polícia Militar, hoje?
É fazer exatamente o que a população espera dela. Dar segurança. Se a polícia ouvir mais a sociedade, vai saber o que ela quer. A sociedade não quer uma polícia fazendo operação em favela toda noite. Ela quer uma polícia lá, constantemente.

As "blitzes" dariam esta segurança?
Não. A maioria das pessoas tem medo da blitz. Primeiro, porque elas são facilitadoras da corrupção. O policial que está fazendo a blitz não está devidamente orientado, fica apontando o fuzil quando não deveria apontar. E quando tem apenas um carro, a gente já sabe que é coisa armada. Então, a blitz já deixou de dar segurança. Hoje ela causa desconforto.

Existe algum tipo de controle sobre o que a polícia está fazendo nas ruas?
Não existe nenhum mecanismo de fiscalização. O policial faz o que quiser na rua. Todas as denúncias recentes envolvendo violência ou corrupção policial são feitas pela imprensa, pela população ou pelos próprios traficantes. Nenhuma pela corregedoria da PM. Aí você vê o quanto nossos mecanismos são frágeis. Não tem fiscalização, não tem supervisão. Se a Polícia Militar fosse uma empresa, certamente estaria sofrendo uma auditoria.

Isso não acaba influenciando na questão da honestidade?
A falta de honestidade está diretamente ligada à questão dos baixos salários. Não que um salário alto vá acabar com a corrupção, mas vai acabar com os R$ 20,00 da "cervejinha". Porque hoje, a "cervejinha é a cesta básica, o leite em pó do filho. Se você tivesse um salário de R$ 1500,00, atrairia pessoas da classe média que utilizariam a polícia como uma ponte para outras carreiras. Seriam pessoas mais cultas, menos preconceituosas.

Falta instrução para a PM?
Nunca foi tão fácil entrar para a Polícia. Hoje são admitidos quatro mil policiais por ano. As turmas com o maior nível de escolaridade foram também as de maior evasão. Porque são mais questionadores, se decepcionam rápido. Hoje, o cara já faz o segundo grau pensando em ser PM. Só que não é o segundo grau de 10 anos atrás, é um nível muito mais baixo. E o curso de formação na academia de polícia só dura 90 dias. A PM vai dizer que são seis meses, só que são 90 dias na Academia e o resto é estágio, na rua. Ninguém consegue moldar ninguém nesse tempo.

Quem quer ser policial hoje em dia?
A pessoa que não conseguiu ser trocador de ônibus. O salário é o mesmo e o risco é menor.

Dá para fazer um raio-x da PM hoje?
A Polícia Militar hoje é uma caixa-preta. Ninguém sabe o que acontece lá dentro. Se você ligar para pedir uma estatística de homicídios, você não vai ter.

Mas os números são publicados mensalmente no Diário Oficial.
Os índices da secretaria de Segurança Pública são manipulados. Por exemplo, a Secretaria divulga que acabou com os seqüestros no estado. Mas isso não quer dizer que a polícia esteja mais eficaz. Os seqüestros acabaram porque essa modalidade de crime estava ficando perigosa. E quem era seqüestrador passou a fazer roubo de carga.

A "banda podre" da polícia existe?
Existe.

Mas banda é metade...
Mas eu acho que é a metade. A banda podre existe, sim, mas não é uma organização, tipo "Banda Podre S.A.". Eu prefiro um policial que passa o ano sem prender ninguém, mas que seja decente, honesto, do que um policial bandido que prende dez. Esses caras vão até prender um traficante, mas antes vão "mineirar" (extorquir, na gíria policial) muita gente.

Recentemente, alguns policiais que fazem parte da Força-Tarefa (grupo criado para combater o crime organizado) foram acusados de participar de uma tentativa de seqüestro seguida de extorsão. O que você achou disso?
Isso me deixa chocado. A Força-Tarefa é subordinada ao gabinete do Secretário de Segurança (Josias Quintal, secretário no governo Garotinho, hoje deputado federal pelo PMDB). Pelo menos ali tinha que ter policiais de elite.

O que diferencia um policial comum de um que integra grupos especiais como o BOPE?
Teoricamente, o policial do BOPE era para ter mais treinamento que qualquer outro policial normal. Mas como o BOPE cresceu muito, esse treinamento deixou de existir, e o policial está cada vez mais próximo ao de uma unidade comum. Antes, o policial passava por um cursoonde dava, pelo menos, uns 1500 tiros.

O que você acha dos batalhões especiais?
Se você precisa criar batalhões especiais, é porque alguma coisa não está bem. É o sinal de que o batalhão da área não está trabalhando bem. O GETAM (Grupamento Especial Tático Móvel, criado em 1999 para fazer o policiamento das áreas de alto índice de criminalidade), por exemplo, foi criado para atender a situações emergenciais. Só que se o batalhão da área atendesse à necessidades, você não precisaria do GETAM ali.

Como você avalia o trabalho do GETAM?
O GETAM é uma forma burra de policiamento.

Por que?
Porque engana muito a população. É bom ter dez policiais passando em três carros e depois não passar mais ninguém? Se você dividisse esses homens, ganharia dez ruas com policiamento. Então, essa é uma forma ineficaz de policiamento, que não está presente, que passa e vai embora. Seria melhor diluir esses policiais e ter sempre alguém passando.

Mas isso não funcionaria em toda a cidade...
Não. Há lugares, como a área da [estação de trens] Leopoldina, o buraco Quente da Mangueira, em que você precisa de um policiamento mais forte. Tirando a Zona Sul e o Centro da cidade, a situação do rio hoje é muito perigosa. Não daria para deixar um policial sozinho numa viatura à noite.

Qual seria o lugar mais seguro e o mais perigoso do Rio?
Com certeza os mais seguros são a orla de Copacabana e aLagoa Rodrigo de Freitas. Existe muito policiamento ali. Mas veja bem, só a orla. Se você andar uma rua para dentro, não vê mais ninguém. De perigoso, eu diria que é toda a zona da Leopoldina, Penha, Bonsucesso. O grande Méier, também. Tem muita favela ali, eles fazem muito "bonde" por ali.

Como é que agem os "bondes"?
O objetivo dos bondes é levar armas, drogas e efetivos de uma favela para outra. E se o bonde cruzar com um carro veloz, de quatro portas, ele vai querer levar esse carro. É um roubo com muita violência. Eles querem o seu carro rápido, e estão drogados, nervosos. É bem diferente de um roubo comum.

A secretaria de Segurança gosta muito de anunciar os "inimigos-públicos-número-um". Existe isso mesmo?
Isso é uma mentira. Na primeira vez em que o Marcinho VP foi preso, ele tinha se tornado o inimigo número um por ter dado uma entrevista autorizando o Spike Lee a gravar um clipe [do cantor Michael Jackson] no morro Dona Marta. Aliás, ele foi preso pelo meu batalhão e eu estava de serviço no dia. Ele ofereceu R$ 30 mil para ser solto. Eles simularam que queriam o dinheiro, mas ele não pagou. Não pagou porque não tinha, disse que já tinha sido "mineirado" naquele mês. Que inimigo público número um é esse, que não tem R$ 30 mil para dar pela sua liberdade?

Isso então é um charme da secretaria de Segurança?
É E posso até dizer que o [Fernandinho] Beira-Mar não é tudo isso que dizem.ela não é mais que um varejista de drogas, já passou para um nível intermediário, como o Uê, o Orlando Jogador, o Escadinha [todos líderes de facções do tráfico em diferente épocas, já mortos]. Mas até 1994, só quem tinha servido em Caxias sabia quem era o Beira-Mar. Em 97, conversei com um delegado da Polícia Federal responsável pela Divisão de Entorpecentes e ele não sabia quem era o beira-Mar. Em quatro anos ele ganhou notoriedade, mas não é nenhum Scarface.

Qual foi o maior mico da polícia do Rio?
Sem dúvida o episódio do 174. Ele chocou a população mais do que [os massacres de] Vigário Geral e Candelária. Nesse dois casos foram maus policiais, policiais bandidos que tomaram a iniciativa. O 174 foi uma ação oficial. O que me impressione é que aquilo estava previsto. A única mágoa que eu tenho do tenente-coronel Penteado (José Oliveira Penteado, então comandante do BOPE) é que ele nunca recusou uma missão. Sabia das nossas dificuldades, mas tudo o que mandavam, ele fazia. Isso jogava a nossa eficiência lá embaixo. O Marcelo Santos, policial que errou o tiro, é um ótimo atirador, mas estava cansado. Aliás, estou produzindo um filme com o José Padilha (diretor de "Os carvoeiros", premiado no Sundance Festival) chamado "O outro dia de cão", contando justamente o episódio do 174 [posteriormente, o filme acabou se chamando apenas "Ônibus 174"]. Queremos lançar o filme em junho do próximo ano, perto de completar dois anos da tragédia.

De lá para cá, alguma coisa mudou?
Nada. É uma pena que a morte da Geísa Gonçalves (refém que acabou morrendo no episódio) não tenha servido para nada.a instrução ainda é insuficiente, e o armamento e os equipamentos prometidos na época, até hoje não chegaram.

Você é a favor da legalização das drogas?
Sou. O que já vi de viciado morrer em favela, só para comprar droga, é impressionante. E são pessoas comuns, profissionais liberais, que correm risco à toa. Além disso, o tráfico é o grande facilitador da corrupção policial. A gente tem que parar com essa hipocrisia e repensar esse modelo. Dois terços da população carcerária do Rio são de presos por crimes relacionados ao narcotráfico. Então, com a liberação iria haver também uma redução da população carcerária, o que seria ótimo. O único problema é que haveria um aumento de outras atividades criminosas. Hoje em dia, o cara não assalta banco porque é mais seguro vender cocaína. Mas haveria menos corrupção.

Por que você pediu baixa da corporação?
Eu gostaria de ficar na corporação até o fim da minha vida, como coronel. Mas decidi sair em função da perseguição. Fui preso uma cacetada de vezes por estar pedindo uma polícia melhor. Da penúltima vez, fui preso porque a gente estava recebendo soldados que formaram sem dar um único tiro. É como formar um cirurgião que nunca operou ninguém. O instrumento de trabalho de um policial é a arma. A minha última prisão foi revogada por um juiz que entendeu que o que eu falava era de interesse público. A segurança é pública, pertence à sociedade. Então, porque eu não posso dizer que o governo está comprando essas Blazers, mas não está comprando pneus? Elas estão baixando no batalhão por falta de pneus. Nós ficamos dois anos sem termos baterias. Você chegava no pátio do batalhão e via um monte de carros parados, porque eles não compravam baterias, compravam mais carros.

Você se arrependeu?
Eu acho que tenho que falar muito mais. Essa catarse é importante para quem tenha saído da polícia. Tem muita gente que pensa como eu lá dentro, mas que não fala porque não tem coragem, porque sabe que vai preso. Gente que sabe que a polícia hoje não está bem. Até o Comandante-Geral da PM, coronel Wilton Ribeiro, sabe disso. Ele falou dia desses numa reunião que o padrão de qualidade está caindo, mas que a ordem do governador é contratar o maior número de policiais, mesmo que isso reduza a qualidade.