17 outubro 2005

"orgia-bugia nos traz alegria"

aldous huxley é, na minha opinião, um dos camaradas mais inteligentes e visionários do século 20. ao contrário das teorias de orwell em 1984, sua utopia criada em admirável mundo novo não envelheceu. pelo contrário, ele foi capaz de antecipar que a dominação mais eficaz não se dá através da privação, mas do entorpecimento dos sentidos através da busca incessante pelo prazer do consumo, transformando-nos em "animais gentis e dóceis". e no caso de qualquer sombra de dúvida ou angústia, há o soma, a droga perfeita, que acalma e não dá revertério, fornecida pelas próprias autoridades em esquema de ração semanal.

a propósito, se alguém se interessar pela leitura, recomendo garimpar em sebos a edição da ed. bradil, de 1969. a reedição da editora globo, além de uma tradução menos feliz, não traz o prefácio crítico escrito pelo autor 20 anos depois do lançamento da obra.



reproduzo trechos picados do momento em que o selvagem -- personagem criado fora da utopia, nas "reservas", onde as pessoas mantém hábitos arcaicos como a reprodução vivípara e o culto a divindades -- encontra-se com o administrador-geral. é o ápice da história, quando é discutido o núcleo duro do pensamento civilizado industrial que rege a utopia. o gancho que escolhi é o momento em a proibição das artes (no caso, a obra de shakespeare) é questionada. seguimos a partir da resposta:

"Porque é velho; eis a razão principal. Aqui não temos aplicações para coisas velhas. (...) Especialmente quando são belas. A beleza atrai, e não queremos que as pessoas sejam atraídas por coisas velhas. Queremos que apreciem as novas. (...) Nosso mundo não é o mesmo de Otelo. Não se pode fazer calhambeques sem aço -- e não se pode fazer tragédias sem instabilidade social. Agora o mundo é estável. O povo é feliz; todos têm o que desejam e nunca querem o que não podem ter. Sentem-se bem; estão em segurança; nunca ficam doentes; não têm medo da morte; vivem na perene ignorância da paixão e da velhice; não se afligem com pais e mães; não têm esposas, filhos nem amantes a que se apeguem com emoções violentas; são condicionados a não poderem deixar de se comportarem como devem. E se alguma coisa não estiver bem, há o soma. (...) É esse o preço que devemos pagar pela estabilidade. Tem-se que escolher entre a felicidade e aquilo que antigamente se chamava arte. Sacrificamos a grande arte. Em seu lugar temos filmes sensíveis e os órgãos de perfume.

(...) A felicidade real parece bem sórdida em comparação às compensações que se encontram na miséria. E sem dúvida a estabilidade não é tão bom espetáculo quanto a instabilidade. E estar contente nada tem do encanto de uma boa luta contra a desgraça, nada do pitoresco de uma batalha contra a tentação, nem de uma derrota fatal pela paixão ou pela dúvida. A felicidade nunca é grandiosa. (...) [Ela] mantém as engrenagens em constante funcionamento; a verdade e a beleza não são capazes disso.

(...) Por que iríamos perseguir um substituto dos desejos dos jovens, quando os desejos dos jovens nunca faltam? Ou um substituto para as distrações, quando continuamos desfrutando todas as velhas tolices até o fim? Que necessidade temos de repouso quando nosso corpo e nosso espírito continuam em deleite na tividade? de consolação, se temos o soma? de algo imutável, quando existe a ordem social? (...) Nossa civilização escolheu a máquina, a medicina e a felicidade.

(...) A civilização industrial só é possível quando não existe renúncia. É necessário desfrutar até os limites máximos impostos pela higiene e pela economia. De outro modo as engrenagens cessam de girar. (...) A civilização não tem absolutamente necessidade de nobreza nem de heroísmo. Essas coisas são sintomas de ineficiência política. Numa sociedade adequadamente organizada como a nossa, ninguém tem oportunidade de ser nobre ou heróico. É preciso que as condições se tornem essencialmente instáveis antes que se apresente tal oportunidade. (...) Todos podem ser virtuosos hoje. Pode-se conduzir consigo pelo menos a metade da própria moralidade num frasco."