08 junho 2006

e o outro lado da notícia?

o texto abaixo, assinado por alceu castilho, editor e jornalista responsável pela agência repórter social, foi publicado no comunique-se ontem (07/06).

apenas leiam...

Willian França: "Esses sem-terra não podem ser nem chamados de animais"

Alceu Castilho
Fonte:Repórter Social


Willian França é diretor de Comunicação da Câmara dos Deputados. Seu cargo público e sua hierarquia não o impediram de se pronunciar nos seguintes termos, na noite de terça-feira em Brasília, em relação aos sem-terra presos no Ginásio Nilson Nelson:

- Por que dar comida para esse tipo de gente? São uns animais. Ou melhor, animal, não, porque animal tem noção de onde pode entrar. Esse tipo de gente não pode ser comparada a animais.

Willian fazia os comentários para uma roda de jornalistas. Não era uma exceção. Mas mesmo repórteres que não ousariam falar contra "a turma dos direitos humanos" demonstravam-se pouco dispostos a questionar as ações do poder público subseqüentes à invasão da Câmara pelo MLST.

A deputada Maninha (PSOL-DF), uma entre os quatro únicos deputados que estavam no gramado enquanto se efetuava a prisão em massa de homens, mulheres, adolescents e crianças, sintetizava aquele entardecer em Brasília: "A única vez que vi isso foi em 1969, quando era estudante da UnB e tivemos de sair em fila indiana, de mãos para cima".

A imprensa considerou legítimo o regime de exceção nos gramados do Congresso. Um presidente comunista da Câmara ordenou a prisão de centenas de pessoas, indiscriminadamente, e mais de 500 brasileiros foram detidos no gramado, em frente ao símbolo maior do País. No início o cerco policial mal existia, e as idas e vindas de transeuntes eram evidentes -- mesmo assim, todos que estavam ali foram presos no início da noite e levados em ônibus da PM para o ginásio Nilson Nelson, revivendo algo que os chilenos viveram no Estádio Nacional, na era Pinochet.

À exceção das lideranças, os sem-terra pouco foram entrevistados. O anoitecer em Brasília viu 10 crianças e 32 adolescentes serem presos, sem a presença de assistentes sociais, promotores, juízes. O Estado de Direito brasileiro foi apunhalado em plena Esplanada, mas a mídia adotou o discurso do vilão único -- os sem-terra que invadiram o Congresso.

Enquanto isso, vestidas com roupas de verão, as crianças passavam frio (tem feito frio em Brasília nos últimos dias) e fome. Algumas tinham comido somente às 4 horas. A única que se alimentava era Douglas Freitas, um bebê de 6 meses, ainda amamentando.

Às 22 horas, após algum tempo no Nilson Nelson, as crianças e adolescentes foram levados, com algumas mães ou responsáveis (mas não pais) para a Delegacia da Criança e do Adolescente. Ali a cobertura da imprensa minguou. Ao meu lado agüentava firme uma repórter da Radiobras, Roberta Lopes. Chocada. Cinegrafistas da Globo gravavam as cenas. Um repórter do Globo chegou quando todos já haviam ido embora, às 2 horas desta quarta-feira.

Antes, uma grata surpresa: nada menos que cinco repórteres do Centro de Mídia Independente, uma rede mundial de informações independentes do setor privado, compareceram ao local e fizeram as vezes dos jornalistas da chamada grande imprensa. (Eu estava no local como correspondente da Associação Paulista de Jornais em Brasília, e aproveito aqui partes do relato enviado à rede de 16 jornais.)

Comida de presídio

As crianças seguiam passando um frio que só aumentava. Os adolescentes, uma delas grávida, estavam amontoados nos corredores da delegacia. A assistente social só chegou às 22h30. Em seguida, um comissão da Vara da Infância. Nada disso impediu que as crianças ficassem até a 1h15; os adolescentes, até 1h45.

"Vocês querem que eu encomende lanches do McDonalds para eles?", perguntava o delegado-chefe José Adão Rezende. "Querem que eu os leve para o sofá da minha casa?"

A comida (arroz, batata, salsicha e farofa) só chegou à 1 hora. Veio diretamente do presídio da Papuda.

Na mesma hora chegaram algumas roupas, somente para as crianças. O frio em Brasília tinha aumentado ? e radicalmente, para pessoas que em grande parte tinham vindo do Nordeste. Mas não foi o SOS Criança, do governo distrital, que levou os agasalhos. Foram vizinhos. Voluntários.

Nada disso foi relatado. Aldo Rebelo passou um cheque em branco para o governador Joaquim Roriz, e ninguém estranhou. O presidente da Câmara enviou por volta da meia-noite uma relações públicas à Delegacia da Criança. Ela adotava o discurso ? o mesmo de delegados e policiais - de que a culpa era somente dos pais, pela negligência.

Os jornalistas não podem ser omissos em momentos emblemáticos da cena brasileira. Ou defendem o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Constituição, o Estado de Direito, dos dois lados da moeda (o que necessariamente deve incluir a cobrança do poder público), ou concordam com o senhor Willian França e sua teoria dos animais.