23 maio 2007

"lá vou eu de novo, como um tolo..."

a crônica abaixo já é minha conhecida de muuuitos anos. apesar de a parte do "irmão pára-quedista" ser a que melhor se gravou na memória, o universo tijucano em que nasci e me criei até os sete anos, e por onde gravitei por boa parte do meu tempo na terra, guarda muitas semelhanças com o grajaú retratado.

agora que, ironicamente, a vida parece imitar a arte, lembrei-me do texto. a situação não parece muito diferente.

na atual conjuntura, as fichas estão sobre a mesa -- embora ainda fechadas na minha mão. a roleta já começou a rodar, e se ainda não as soltei, e porque a aposta envolve dois universos distintos e antagônicos. um representa a pirueta que minha vida deu há oito meses, e o outro... bem, o outro é um salto no escuro. situação que, convenhamos, excita deveras minha natureza mutante.

vejamos que bicho vai dar. alea jacta est.
ah, não esqueçam o texto, pô!

As noivas do Grajaú - Luis Fernando Veríssimo

Acho que todos deviam ter uma noiva no Grajaú, principalmente os homens casados. Antes que me acusem de incentivar o adultério e a licenciosidade suburbana, esclareço que minha noiva do Grajaú é puramente teórica. E note que falo em noiva, não em amante. As noivas do Grajaú são castas e recatadas. Só deixam pegar na mão e assim mesmo com recomendações. Aquele montinho de carne na base do dedão, por exemplo, só depois de casados.

Você leva duas semanas para encostar, não na noiva do Grajaú, mas no portão da sua casa. Se tocar no seu cotovelo, soa um alarme dentro da casa e o irmão dela, ex-pára-quedista, vem ver o que está acontecendo. Um homem casado que tem uma noiva no Grajaú é mais fiel à sua mulher do que a sua mulher merece. É quase indispensável para a felicidade de um casamento que o marido tenha uma noiva no Grajaú e a visite diariamente das 5 às 6. Menos às quintas, quando ela tem aula de piano.

Como explicar o fascínio das noivas do Grajaú? Não haverá, na sua relação com ela, qualquer promessa sexual. Com sorte, depois de um ano e meio de noivado firme, você morderá a sua orelha. E ela pedirá que você nunca mais faça isso porque ela sente muitas cócegas e, olha aí, quase perdeu um brinco. Um dia, quando conseguir convencer o ex-pára-quedista a deixá-la ir com você até ao bar da praça tomar uma Mirinda, você conseguirá intrometer uma mão nervosa entre o seu braço nu e a blusa até quase em cima, mas aí ela apertará o braço contra o corpo com força e você temerá pela gangrena nos dedos.

E a conversa? A coisa mais íntima que ela perguntará a você será:

- Acompanhas alguma novela?

Você experimentará com assuntos mais conseqüentes.

- És ciumenta?

Ou, afoitamente:

- Qual é teu sabonete?

Mas ela repelirá todas as tentativas de uma conversa séria. Até rirá quando você tentar ser poético,
pomba!

- Esta hora, este crepúsculo, sei lá...

Ela se dobrará de tanto rir. E a mãe dela aparecerá na janela para ver se você não avançou na orelha outra vez.

A vigilância é constante. O pai dela - aposentado, espiritualista - usa um coldre preso à cinta. O coldre está vazio, mas o seu tamanho é eloqüente: em algum lugar está guardada a grande arma com que ele zela pelo seu patrimônio, incluindo a virgindade da filha e uma coleção encadernada de Malba Tahan. Na única vez em que conversar com ele você ficará sabendo que ele já expeliu 17 pedras pela uretra e foi militante da UDN. Cuidado. A mãe tem bigode. Seus olhos pretos na janela são como dois faróis que guiam a virtude de Grajaú para a cama, intacta, todas as noites.

* * *

- Sua mãe não vê novela?

- Só a das oito.

- Não tem o que fazer na cozinha?

- Temos empregada.

- Ela não...

Mas a mãe interrompe:

- Olha esses cochichos, olha esses cochichos...

As noivas do Grajaú têm um irmão menor que se diverte tentando chutar você nas canelas. Um dia ele erra, acerta o muro e vai correndo dizer para a mãe que você lhe bateu.

É uma provação noivar no Grajaú. Por que você insiste?

As noivas do Grajaú têm amigas que passam em bandos pela calçada de braços dados e rindo, você não tem a menor dúvida, de você.

É demais. Você não precisa disso. O casamento está fora de questão. Você já é casado. Ou tem outra noiva em algum bairro onde a vigilância é menor e o acesso é mais fácil. Mas você persiste. O fascínio é irresistível. Às seis em ponto, a mãe dela acende a luz do alpendre. É o sinal para você ir embora. Você jura que nunca mais volta.

Mas aí ela cospe fora o chiclé e pergunta:

- Amanhã você vem?

E você vai.


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sem comentários.