no ônibus de volta do trabalho pra casa, distraí-me do livro e pela janela dei com a paisagem do aterro, impressionante mesmo quando a escuridão da noite só permite ver a constelação de luzes dos apartamentos de um lado, e do outro, o negrume da baía de guanabara.
depois de uma eternidade de duas semanas de pampa e buenos aires, a volta reafirma a certeza: os nascidos entre mar e montanha, cujo sono infantil foi embalado pela zoada veraneia de cigarras e cornetas do maracanã; cuja memória foi tatuada pelas charretes de bode da praça xavier de brito, pelas múmias e esqueletos de dinossauros do museu da quinta; cujas narinas foram impregnadas de maresia e mata atlântica; estes não podem se ausentar por muito tempo de seu torrão sem sentir uma fraqueza na alma.
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feito o registro, à viagem: na ida, depois dos costumeiros avisos de apertar o cinto e não fumar, somos informados que, segundo as leis de controle sanitário da argentina, a aeronave será borrifada com inseticida. antes que pudesse entender a piada, a aeromoça sai da cabine com uma lata de spray soltando fumaça pra cima, vai à traseira e volta, primeiro o lado esquerdo, depois o direito.
ri meio de incredulidade, meio de deboche. será que os argentinos acham realmente que uma borrifada safada dessas vai matar qualquer uma das pragas terríveis que portávamos? e quais seriam elas? talvez eles achassem que eu levava uma família de aedes aegypti clandestinos no forro do casaco, ou uma horda de piolhos de cobra mocozados na cabeleira. tive vontade de ter um saquinho de vibriões. porque colérico eu já estava.
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para um brasileiro entrar na argentina basta a carteira de identididade. mas quando você passa pela imigração, deve entregar um papelzinho que te deram antes de embarcar, preenchido com seus dados, o lugar em que vai ficar e por quanto tempo. essas duas últimas informações podem ser de mentirinha, que ninguém checa.
eles te devolvem uma metade carimbada, cuja única função, além de ser perdida, é ser apresentada na saída, provando assim que você entrou no país. talvez os argentinos tenham lido muito borges, pois desconfio que eles acreditam que alguém possa sair de um lugar sem ter entrado primeiro.
só descobri que havia perdido meu papel (como era de se esperar) quando no check-in de volta, depois de esperar uma hora e meia na fila. para receber meu bilhete, a atendente disse que era preciso pagar 50 pesos no banco, onde fui informado que deveria antes retirar o formulário em cinco vias na imigração, cujo funcionário explicou que deveriam conter meus dados, pagar e devolvê-lo, para receber outra ficha, escrever as mesmas coisas em duas vias, e então ser liberado.
os trâmites só levaram meia hora, depois da qual volto ao guichê da varig para retirar minha passagem, mais exausto do que puto, porque se burocracia é ruim, em errpanhol é pior. a moça passa uns 40 segundos olhando meus papéis com cara de quem não está entendendo nada, até se decidir por me entregar o bilhete.
subo, tomo uma cervejinha pra desopilar, e quando me dirijo à área de embarque, sou barrado porque não paguei ainda uma taxa de 18 pesos por um adesivinho na passagem, que me permite acesso à fila da revista, e depois à imigração.
dez minutos se passam até chegar à minha vez de descobrir que estou com as fichas erradas. o oficial atrás do vidro diz que tenho que descer tudo de novo até a imigração e trocar essas duas vias por uma das cinco que paguei. "quando voltar não precisa entra na fila, fala direto comigo".
desço, pego a fichinha, volto e o cara não está. o de outro guichê pergunta o que estou fazendo, vou lá, explico, entrego o raio do papel e recebo outra ficha, para ser preenchida com os mesmíssimos dados das outras cinco vezes. aí perco a esportiva, em português, mesmo. "porra, pra isso fizemos o mercosul?". de sacanagem, rabisco uns garranchos, o cara me entrega o papel que fui buscar, com outro carimbo. e só.
por sorte tinha um quiosque em frente ao portão de embarque, onde finalmente pude relaxar por um tempo, curtir um capuccino e divagar se uma das razões para se manter essa estrutura de estados-nações, hoje em dia, não seria justamente alimentar a máquina burocrática que eles mesmos criaram, numa inversão de valores absurda.
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outra coisa que me chamou a atenção, além de uns rabos-de-saia na área, foi a fila de brasileiros que começou a se formar para entrar no avião. todo mundo sabe que os assentos são marcados, e há um tempão que não se ouve falar mais em overbooking, de maneira que só posso concluir que existem pessoas com uma tara secreta por filas.
depois de meia hora de atraso e três xícaras, meu gozo masoquista foi inteiramente satisfeito quando um funcionário do aeroporto anuncia que por motivos de tráfego aéreo, esperaríamos mais dez minutos antes do embarque, e pedia às pessoas que, por favor, não formem filas. vingança!
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o teor do bostejo pode dar a entender que a viagem não foi boa. lêdo e ivo engano. mas o que seria das narrativas sem as idiossincrasias?
depois tem mais.