13 agosto 2003

A fábula do contador de histórias africano

Tem coisas que só acontecem comigo...

Sábado uma amiga me convidou para assistir na Uni-Rio a uma oficina de um contador de histórias africano, que também trabalhava como ator na companhia de teatro do Peter Brook, o papa do teatro moderno. Apesar das minhas restrições com relação ao teatro moderno, provavelmente um ranço atávico tijucano, fui. Ainda mais sendo o camarada muçulmano, descendente de uma linhagem real lá no país dele etc., achei que podia aprender alguma coisa. (Aliás, já viram a programação do Teatro do América, na Campos Sales? Vale a pena; sempre é espetáculo infantil, Agildo Ribeiro, umas peças com gostosonas tipo Analista de Bagé, ou pérolas como "A revolta dos Ânus acabou em...nádegas!". Genial!).

Saltei do ônibus e só a vista daquele morro atrás da faculdade e o cheiro de mato molhado de chuva já estavam valendo o programa. À medida em que ia chegando, as lembranças dos meus dois anos de estudante de cenografia lá vinham fresquinhas: como a de uma peça em que fiz o figurino, quando na noite da única apresentação acidentalmente esbarrei num fio e apaguei todas as luzes do palco por quase um minuto. Ou da vez em que eu e outro camarada (de quem continuo amigo), SEM QUERER fugimos com o dinheiro arrecadado para comprar mais cervejas durante uma festa no DA.

A palestra era na Sala Branca, exclusiva para dança. Vários guarda-chuvas na soleira indicavam o local. A princípio fiquei grilado de deixá-lo com os outros, já que nem meu ele era. Ainda mais que guarda-chuva, sabe como é, bobeou, ou perdeu ou alguém levou. Acabei cedendo. Perto da porta havia um mar de sapatos, e por causa do piso de madeira. Ao tirar meus tênis, vi que tinha um par igualzinho, só que bem mais ferrado. Não que os meus estivesse tinindo, pelo contrário, as duas solas haviam começado a soltar-se, mas eu as colara com cola de sapateiro, que aprendi a manusear nos tempos de teatro de bonecos. (A verdade é que já fiz muita coisa, um dia eu conto).

Não era exatamente uma palestra. O curso já vinha acontecendo há quase uma semana, e naquele sábado, as pessoas meio que agradeciam as aulas apresentando alguma coisa. Quando cheguei tava a Letícia Spiller recitando umas poesias dela, uma das quais inspiradas no Rumi. Não prestei muita atenção: só me lembrava daquele filme em que ela fazia uma beata careca (esqueci o nome) e na época da Babalu, em que eu até assistia a novela de vez em quando só para vê-la de vestidinho curto, pousada sobre aqueles tamancões (fetiche!).

Teve um cara que cantou uma música no violão e deu pro professor umas sementes de algodão, pois aprendera com ele que todo mundo é uma árvore. Uma menina interpretou dublagem da cena da apresentação dos filhos do capitão (coronel?), do Noviça Rebelde. Apesar de detestar o filme, até que foi bem engraçado. Uma mulher chorou ao contar que sua maior criação havia sido o filho, e que, depois dele, toda a arte seria secundária. Depois de cada um, o africano fazia um comentário. Mas o que mais me impressionou não foi o que ele disse, e sim, suas mãos. Compridas, finas mas ao mesmo tempo calejadas, como que entalhadas em madeira. Uma vez, na sala Cecília Meirelles, vi um molde das mãos de alguma pianista (para variar, esqueci quem era). Achei curiosa a homenagem, mas as mãos não me pareceram tão expressivas quanto às desse cara. Elas sim, mereciam um molde.

A coisa foi seguindo, e eu mais prestando atenção nas pessoas em volta do que no que estava sendo apresentado. Afora uma menina ruiva, que no fim trocou de roupa com a porta do banheiro aberta, e ficou só de calcinha para quem quisesse ver (já tinha me esquecido da falta de pudores burgueses do povo "ligado a teatro"), as mulheres não chamavam muito a atenção. Muitos estavam vestidos com roupas meio rasgadas e comidas de traça, do tipo que não entrariam na minha casa nem como pano de chão, e havia um certo cheiro de morrinha no ar. (Meu deus, estou ficando um caretaço...) Isso para não mencionar as crianças...

Elas corriam de um lado para o outro, falavam alto e atrapalhavam quem se apresentava, sem que seus pais fizessem mais do que repreendê-las sem muita convicção. Cutuquei minha amiga e disse: "começo a achar Herodes natural...". Ela riu, achando que eu estava brincando, mas tive vontade de pedir para os pais mandarem as Dandaras, Odaras, Anauês, Cauês, Amoras, Esperanças, Luans etc. brincar lá fora.

Mas foi no fim que houve o terror: meus tênis NÃO ESTAVAM onde eu os havia deixado! Alguém os levou, deixado o par ferrado para mim. Meu sangue congelou e segundos depois ferveu. Com uma ponta de desepero, comecei a esquadrinhar o chão em busca dos pés das pessoas, mas qual: o lalau já havia se mandado há tempos. Voei até a porta atrás do me guarda-chuva. Busquei nos bolsos um cigarro para ver se me acalmava, mas lembrei que havia esquecido o maço na casa da minha mãe. Não me restou alternativa a não ser calçar aqueles trapos. Não sei se há sensação pior que usar sapato dos outros. É tão invasivo quanto vestir uma cueca de alguém, com o agravante que sapatos nunca são lavados com a mesma freqüência de cuecas. Ou estarei enganado?

Para piorar, os sapatos ainda eram um número menor que os meus! Fui ficando puto, e minha amiga nada de ir embora. Eu queria contar-lhe minha tragédia, mas ao mesmo tempo não queria que ninguém ouvisse.

Quando enfim saímos de lá, ela estava maravilhada pela palestra, e eu, puto com a perda, ou melhor, com a porra do roubo dos meus tênis. Enquanto eu só pensava em aparecer lá no dia seguinte com um taco de beisebol para acertar a cabeça do filho da mãe, ela caminhava nas nuvens. E começou com um papo de "como as pessoas no Ocidente estão carentes de um mestre".

- É por isso que seguem qualquer besta quadrada com um discurso mais ou menos articulado sobre o universo e a natureza, grunhi. Não estava nem um pouco convencido de ter estado à frente de um "iluminado". - A culpa é dessa maldita cultura de individualismo desenfreado. Neguinho foi tão estimulado a acreditar que pode resolver tudo sozinho que perdeu totalmente a noção de comunidade. Aí se sentem perdidos, e acham que qualquer idiota que consiga juntar um grupo é um santo homem.

Foi mais ou menos asim que falei. Ela quis argumentar, mas a simples visão daqueles sapatos estropiados me fazia o sangue latejar nos ouvidos e perder a razão. Então, a partir daí eu ia embaralhando o que a gente dizia de tal forma que, em pouco tempo, só havia um novelo de idéias absolutamente confusas. É um talento que eu tenho, o de acabar com uma discussão tornando-a incompreensível. Quando o blá-blá-blá terminou, eu despejei minha ira contra o mundo. Reclamei da chuva, de toda aquela baboseira sentimentalista que ouvira à tarde inteira, das crianças piolhentas e de seus pais deslumbrados com o Sutiguê.

- O nome dele é Tiguê, ela corrigiu.
- Não, é SU-tiguê! Eu ouvi todo mundo falando. Até o cara que estava traduzindo, que parecia o bonequinho do arroz brejeiro, chamou ele assim, respondi.
- É Tiguê! É porque chamavam ele de Mon-SIEUR Tiguê! O som te confundiu.

Aí eu dei uma gargalhada. A explicação era ridícula, e fiz questão de deixar bem claro. - Então eles deviam era chamar ele de Seu Tiguê! Aê, Seu Tiguê, me vê dois quilos de laranja lima! Seu Tiguê, desce mais duas cervas pra nós! Pô, Seu Tiguê esse pastel só tem vento!

Ela agüentou com as minhas palhaçadas e riu também. Eu continuava, me dirigindo a um inerlocutor invisível:

- Pô 'cê não sabe. No sábado eu fui lá na Uni-Rio, na palestra do Seu Tiguê. Não, rapá, não é o Seu Jorge do Farofa, não. É o Seu Tiguê, lá do Peter Brook. É, aquele mesmo. O nome dele à vera é Tiguê. O "seu"´é uma deferência, é porque o cara é importante! Sério, mané!uma amiga jura de pé junto! Então, tava eu lá no Tiguê, aí porra, aquele negócio de teatro, né, aquela firula. Tinha que tirar o sapato pra entrar. Pois é, e 'cê acredita que no final acabaram levando meu pisante e deixando um outro igual, todo fodido e ainda por cima um número menor!!!

Rimos muito dessas besteiras. Mas todas as vezes que eu repeti Sutiguê naquela noite ela expirava o ar numa risadinha de desdém, pela minha ignorância do nome do sujeito. Fiquei quieto. Há anos nos conhecemos, e toda vez que surge uma questão desse tipo, ela faz questão de sustentar uma opinião contrária à minha, por mais errada que esteja.
Por exemplo, naquela cena do Pulp Fiction em que o John Travolta vai dançar com a Uma Thurman, o apresentador pergunta o nome dois dois, mas ELA mesma responde por ele, imitando sua voz. Pois bem, uma vez ouvindo o CD, comentei isso, mas mesmo ela ouvindo a voz da Uma Thurman, sustentou o contrário. Não houve santo que a convencesse.

Pois bem, dessa vez eu não estava disposto a ceder. No dia seguinte, entrei na Internet e busquei a notícia no Globo. O nome do cara é Sotigui. Sotigui Kouyaté.
Mandei para ela anexada a notícia depois desses comentários, que comemoravam triunfantemente a vitória da informação sobre a crença:

"Aí, não te falei que o nome do negão é Sutiguê!
Lê a notícia aí embaixo.
Monsieur Tiguê! Quáquáquáquá!!!! Monsieur Tiguê é o cacete!"

Vingança, afinal!


Bom, como isso foi escrito com o título de fábula, como tal, ela deve ter uma moral no fim. Como não havia pensado nisso antes, resolvi parafrasear o Nietzsche (tomara que ele não venha me puxar o pé de noite):

"Vais ao teatro? Não esqueças o chicote! E também de manter os sapatos calçados!"